Inês Bonduki

Há discursos fotográficos que nascem num piscar de olhos e nos atravessam de forma incisiva e profunda. São poucos. Drum (1996), do fotógrafo dinamarquês Krass Clement, produzido em uma única noite no interior de um bar na Irlanda, me golpeou já no início. Desde então devo tê-lo percorrido umas 20 vezes, e volto sempre que preciso relembrar algo de essencial que há ali para mim.

Mas, guardadas as exceções, em geral vemos que importantes discursos nascem de um aprofundamento do fazer fotográfico e do desenvolvimento de questões sobre o mundo e sobre a própria fotografia. E muitas vezes tais trabalhos não nos golpeiam num primeiro momento, mas nos explicam pouco a pouco quando estamos abertos a escutá-los.

Um dos grandes exemplos deste fazer é a obra do americano Nathan Lyons (1930-2016). Profundo pensador da fotografia e da sociedade, produziu apenas quatro livros fotográficos: Notations in Passing (Anotações de passagem – 1974), levou 12 anos para ser realizado; Riding 1st Class on the Titanic! (Viajando de 1ª classe no Titanic! – 1999), dez anos; Return your mind to its upright position (Retorne sua atenção para a posição vertical – 2014), é um livro com imagens de arquivo de 15 anos e demorou seis para ser editado. O quarto livro é a exceção de Lyons (a resposta imediata e com poder de síntese): After 9/11th (Após 11/9 – 2003) foi produzido em um ano, em consequência do atentado de 2001.

Nathan Lyons e estudantes em frente a Visual Studies Workshop, 1978.
Crédito: Ed. Reed. Reproduzido do livro: McDonald, Jessica. Nathan Lyons – selected essays, lectures and interviews, Texas Press, 2012.

Introdução do livro Notations in Passing, de Nathan Lyons, 1974. Reprodução.

 

Série de imagens de instalações, artísticas ou não, que pontuam as sequências de Lyons, reproduzidas de Notations in Passing (duas imagens superiores) e Return your mind to its upright position (quatro inferiores).

Mas todas essas manobras de edição, ditas assim abstratamente, só fariam de Lyons um grande editor. Afinal quais são suas questões? Qual é sua intenção? O que ele quer dizer?

As questões de Lyons nasceram de sua prática fotográfica, e não ao contrário. Seu procedimento fotográfico foi o mesmo ao longo de toda sua vida: caminhar e coletar imagens que o chamavam – por razão desconhecida num primeiro momento. “Simplesmente coleciono imagens às quais respondo, não há um script para o que estou fazendo, é realmente baseado na minha interação com as coisas que vejo e que me intrigam, me interessam ou me questionam.” Esse gesto de coletar era simples e direto, com o desejo de espontaneidade de um snapshot.

Em seguida, olhar para as imagens, tentar entender as razões por trás delas – que o mobilizaram inicialmente – e começar a articular as questões e visualidades em um discurso estritamente fotográfico. Então, voltar para a rua – ou alguma estrada rumo a cidades da região leste americana – com as imagens pré-editadas na memória. Um movimento de idas e vindas entre a ação de fotografar e a ação de editar. Assim foi construído Anotações de passagem, obra que formula os métodos e questões fundamentais de toda sua produção fotográfica.

Lyons observa o homem moderno através de seu ambiente natural, as cidades. Observa as marcas, anotações, objetos e arquiteturas que a constituem, palimpsestos em incansáveis camadas, imagens e palavras-imagens que se misturam umas às outras no ambiente urbano. De um lado ele reconhece estas manifestações efêmeras como frutíferas fontes de compreensão da sociedade; de outro, se identifica com elas, na medida em que a fotografia é, para ele, fundamentalmente também uma anotação. “Nas expressões públicas escritas na parede em todo o país atualmente, há um ódio, uma ansiedade, um cinismo. Hoje em dia, prefiro ler mensagens nas paredes do que ir a galerias de arte.”

Ainda como estudante de literatura americana, Lyons costumava caminhar com um caderninho anotando as palavras e frases que via pela rua. Um dia percebeu que poderia trocar o caderno pela câmera fotográfica, e as palavras passaram a fazer parte de suas imagens. Lyons fala através das palavras que encontra na rua. Mas não apenas, pois para ele o mundo moderno é um universo de signos, que ele apenas capta e interpreta, dando-os significado. “Minha ideia básica seria que a fotografia funciona em termos visuais muito no mesmo sentido que o estudo da linguagem funciona em termos verbais.”

Reconhecendo essa forte relação de Lyons com signos e com um pensamento abstrato, poderíamos tender a mergulhar em seus livros com uma postura imediatamente racional, tentando decifrar tudo que há para ser dito e entendido. Mas não se trata disso. Lyons constrói suas sequências de forma a criar caminhos mais tortuosos e sensíveis, em que os significados emerjam paulatina e pacientemente. E apenas se necessário.

Último livro de Nathan Lyons, Return your head to its upright position, 2014.

 

“Não acredite no que seus olhos veem” é a frase que encontramos ao abrir o último livro desta grande sequência. A frase é entregue a nós leitores por uma grande mão, sobreposta a um ambiente urbano. A imagem nos faz lembrar a fotomontagem Lonely Metropolitan (Metropolitano solitário – 1932), de Herbert Bayer, ou o Autorretrato com mão (1926-9), de László Moholy-Nagy, ambos artistas da Bauhaus. A simbologia das mãos com olhos é bastante frequente em trabalhos de artistas da escola, e sugere a crença utópica nas novas formas modernas de ver (a Nova Visão), associadas às relações entre a prática do fazer manual e as novas tecnologias.

Fotomontagem Lonely Metropolitan (1932) de Herbert Bayer (reproduzido de https://www.metmuseum.org); Self portrait with hand, de Lazlo Moholy-Nagy (1925-9) (reproduzido de https://www.hauserwirth.com); Primeira imagem do livro Return your head to its upright position (2014) de Nathan Lyons.

Em todos os seus livros Nathan Lyons discute, testa, provoca nossas relações com a imagem. Mas esta é apenas uma das questões com as quais trabalha. Ao editar as anotações visuais que vai coletando pelas ruas, ele reconhece universos temáticos que reaparecem constantemente, talvez por realmente serem muito presentes nas ruas, talvez apenas pelo recorte espontâneo de seu olhar. A guerra ou a opressão da população negra são alguns dos assuntos já presentes nos livros anteriores, mas que ganham grande ênfase neste último, aparecendo como temas centrais em três das sete partes que compõem a sequência.

Através das páginas de seus livros, tais assuntos se atualizam e se transformam, como se a temporalidade da passagem das páginas (e de um livro ao outro) se relacionasse com o tempo real. Assim, se no discurso de 1974 de Anotações de passagem vemos um enforcamento como imagem que se refere ao extermínio negro, em Retorne sua atenção… as três partes que dão ênfase à questão negra indicam haver uma transformação social em curso: na primeira vemos um rosto de uma mulher negra e a frase “Somos um bonito alvorecer”; na segunda, uma placa que diz “Fuga da escravidão”; e na terceira, a frase “Este é o nosso momento” sobrepõe-se ao rosto do ex-presidente norte-americano Barack Obama. Se Lyons saísse às ruas em nosso atual momento, provavelmente produziria notas visuais que indicariam um novo ponto de vista sobre o desenvolvimento dessa questão. 

A questão da opressão negra em Notations in Passing (1974), e em três aberturas de “capítulos” de Return your mind to its upright position (2014).

Primeira imagem do livro The Americans (1958) de Robert Frank; primeira imagem de After 9/11 (2003), de Nathan Lyons, e imagem de Return your mind to its upright position (2014).

Em uma fala de Ethan, filho de Lyons, na homenagem prestada a ele na Visual Studies Workshop em 2016, ele descreve que, anos antes, no contexto de um funeral em que foram juntos, o pai virou-se para ele e disse: “mantenha as coisas simples … reúna alguns amigos e familiares, tome um copo, conte boas histórias … aproveite a companhia um do outro”. Talvez essa frase descreva bem a forma de Lyons estar no mundo e de lidar com a fotografia: manter as coisas simples, valorizar a troca e a companhia das pessoas, contar histórias.

Hoje ficou bem mais fácil publicar livros. Imprimir é relativamente acessível e temos feiras e eventos que abrem espaços mais democráticos para a circulação dos trabalhos. Mas, para além de belas imagens, muito bem editadas e acomodadas num design bem apurado, talvez Lyons nos perguntasse: o que queremos dizer?///