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João Luiz Musa

Reproduzindo fotografias

E se agora, ao invés de desenhos ou aquarelas em papel, o objeto da reprodução, for a própria fotografia a ser reproduzida? Apresentados os problemas de diferente natureza a serem resolvidos, chama a atenção logo de início o valor que será atribuído ao fundo do papel. A primeira questão que aparece já coloca esse critério em cheque: o de atribuir sempre um pequeno valor de cinza para o fundo. No caso dos desenhos, não se pode perder a presença do papel em nome de se perder um pequeno detalhe causado entre o lápis e o papel. Entretanto, as coisas mudam quando estamos diante de uma fotografia moderna, paulistana, dos anos 1960. Ela representa uma tendência: o branco na cópia é o papel fotográfico, não há detalhes em algumas partes da imagem nem nas bordas em branco que a cercam. Como interpretar? Se deixarmos um ligeiro cinza, o que acontece com todo esse sentido da geometria provocado entre as massas pretas do fio elétrico contra o céu que está visivelmente sem detalhe algum. Como seria apresentar em um livro as séries de Harry Callahan Weeds in Snow, ca. 1964, ou Weed against Sky, de 1948, com fundo acinzentado, quando a intenção visível do fotógrafo era deixá-los sem detalhe algum? Seria incorrer em um erro grosseiro.

Mas e se o caso fosse outro e a imagem fosse de Massao Yamamoto das series Chaos ou Tranquility, impressas no livro Small Things in Silence, que usa o branco do papel fotográfico no limite de sua performance e, além disso, introduz uma interferência diferente em cada objeto? Cada uma das imagens tem pequenas marcas de borda, às vezes tingimentos sutis outros mais evidentes, ora em chá ora em café, fissuras mínimas, pinturas em ouro quase imperceptíveis, na borda das imagens de tamanho 12×18 centímetros. Se o branco do papel fosse representado em branco essas sutilezas seriam eliminadas. É preciso voltar a pensar no objeto original e entendê-lo. A borda deverá estar representada com todos seus sinais, talvez uma pequena sombra que o separe de um fundo totalmente branco, e essa sombra possa indicar sua espessura, um indício para quem vê, na imagem impressa, que o autor deseja atenção ao pequeno objeto fotográfico. Entra, então, o fotógrafo especialista em traduzir Massao, que domina a língua que o artista usa, e também domina um outro fazer: a trancrição gráfica em livro, sob determinado papel, em processo que ainda precisará ser decidido. Esse artesão domina mais que o procedimento gráfico, também foi ensinado a ver, é um tradutor “juramentado”, mas não definitivo, pois sabemos que tudo irá se transformar, ainda haverá espaço para um procedimento futuro e uma nova avaliação da poética da obra reproduzida. Esse fotógrafo-especialista-artesão é nosso tradutor temporário.

O livro de Chichico Alckmim, editado pelo IMS em 2019, parece ser um autêntico representante do que acabamos de argumentar. Fala pelo artista, dialoga de forma simples com as imagens, tem empatia por elas, se aproxima de algo que poder-se-ia supor seu espírito, delicadamente. Sem alardes, quase tátil. Pequenos volumes vivos estão todos ali, presentes. Trataria todos esses arquivos com meus próprios critérios, eles me permitem essa ousadia, posso fazer minha própria interpretação, estão abertos a isso. Pode ser que nem concorde com os acertos tonais realizados, mas eles não foram fechados em definitivo, acho que representam uma época fotográfica, representam Chichico em Diamantina. Como será que foi construído? Certas reproduções em outros livros são, ao contrario, parecem fechar-se pois não permitem dúvidas ou perguntas. Deste ponto de vista são autoritárias, impedem que o olhar adentre as imagens, parecem fechadas em um discurso afirmativo, quase panfletário, ou publicitário, ou ter intenção  de exercer algum poder de sedução.

O que é construir um perfil de cor?

Chamamos de perfil de ICC (International Color Consortium) a construção de uma matriz numérica que traduz a cor de um arquivo digital para um monitor ou um papel. É a tentativa de construir a transcrição de um meio para um outro e dar parâmetros para que as cores tenham algum grau de confiabilidade. Existem as normas ISO (International Organization for Standardization) para provas de impressão em papel e para a visualização de arquivos. Elas definem os graus de tolerância para as cores e determinam que, do total de 128 cores básicas do alvo testado, pelo menos 95% delas estejam dentro da norma. Então pode-se constatar que não se trata de acertar 100% do que se visualiza ou se imprime, e devemos sempre lembrar que arquivos em monitor são diferentes de suas impressões opacas.

A confecção de um ICC específico para um papel/impressora é uma tarefa que envolve uma série de saberes, precisa do apoio da colorimetria e da engenharia, é uma tecnologia em evolução. Há vinte anos era impensável que pequenas oficinas pudessem comprar um programa de construção de perfis, o custo era muito alto e apenas algumas empresas de pré-impressão podiam adquirir. O perfil tem como primeiro compromisso gerar cinzas nos quais a escala de referência é cinza; o segundo é acertar as cores básicas e secundárias, mas nem sempre 100% das cores. Os programas acessíveis não são editáveis, o que significa que não se consegue manipular os dados para mudar uma cor de lugar em caso de o perfil mostrar uma deficiência de representação. Estaríamos em dificuldades para imprimir provas de muitos artistas se a falha fosse em um matiz de vermelho como Matisse (A sala vermelha), Miró, Kandisky, Cézanne (Vestido vermelho), Bonnard, Paul Klee (O balão vermelho), enfim muitos que se utilizaram de pigmentos de procedências diversas.

Ao adquirirmos uma impressora que possa ser de uma classe que permita o gerenciamento de cores, podemos criar um perfil otimizado para ela ou utilizar o que se denomina um perfil genérico disponibilizado pelas marcas mais importantes da impressão digital, como a alemã Hahnemuhle, a francesa Canson, a inglesa Ilford, a japonesa Awagami. Em primeiro lugar, as impressoras que permitem esse acesso são as que custam na faixa de 700 dólares para cima, com tintas de alta durabilidade e consistência, mas que aqui passam a valer mais do que 4.500 reais; e uma única folha A4, específica para esse uso, pode custar um mínimo de 7 a 130 reais, para os papéis mais comuns importados, sem os custos de tinta de um papel japonês. Isso torna o uso altamente seletivo e utilizável plenamente apenas se for compartilhado. Poderíamos comparar esses custos aos dos antigos processos de dyetransfer e cibaprint, quando nos deparamos com os trabalhos de Willian Eggleston e de Saul Leiter, das cópias de contato por negativos de grande formato de autores como Joel Meyerowitz, ou no tratamento particular de Joel Sternfeld em American Prospects. Sabemos também que é no uso que se encerra o aprendizado da impressão digital, e não na encomenda de uma cópia em um laboratório de serviços. Se o autor quer pensar uma imagem, uma cor ou uma composição de cores, ele tem que manipular seus resultados, precisa errar muitas vezes para obter o desejado.

O que significa mudar para um novo espaço cor?

Significa transferir a cor para um novo espaço, e claro que, com a exceção do arquivo de origem ter/ser do mesmo espaço de cor de seu destino, ele será modificado. Alguém ou algum programa será responsável pela passagem. E se não existir uma cor específica no novo espaço, como estará resolvida essa transcrição? Temos o perfil construído que otimiza os resultados, mas na hora de convertê-lo sabe-se do problema causado pela ausência da cor no destino. Como exemplo pode-se conjeturar como uma grande variedade de verdes (de matizes e saturações) de um arquivo, não encontrando lugar no novo espaço de cor, poderá se comportar. Como se procede na conversão? Existem várias engenharias, mas vamos refletir sobre as duas principais. A primeira é chamada de conversão relativamente colorimétrica. Ela traz a cor que não existe para o novo espaço e a coloca no valor mais próximo que existe no espaço de destino, na fronteira. Calcula esse trajeto em linha reta na direção central do espaço-cor. Parece ser o melhor caminho, pois do ponto de vista da diferença entre a cor original e sua representação esta será a menor diferença. Para apenas uma cor, que não tinha seu representante absolutamente colorimétrico, talvez o resultado se mostre harmonioso, não cause um salto, um incômodo. Mas se existirem vários verdes, a que me referi, e se por acaso eles estiverem no mesmo eixo do primeiro, esses verdes diferentes serão representados pelo mesmo valor no novo espaço. Sabemos, por experiência, que se não houver a compensação das densidades de preto acionado no momento da engenharia o desastre é enorme, as cores “flutuam” sobre o papel, diminui a tessitura da trama dos objetos. Pequenos borrões de cor em vez de folhas ou de superfícies. A segunda engenharia é denominada de conversão perceptual (a mesma palavra em língua portuguesa e inglesa) e propõe que a conta realizada para calcular as novas cores verdes seja feita proporcionalmente. Os verdes que estão fora do espaço não serão mais representados por um valor único. De tal forma que verdes diferentes, que estão fora do espaço-cor, serão acomodados no novo espaço com diferenças. Haverá uma deformação em todas as cores, mesmo naquelas que seriam representadas por valores equivalentes. Pode-se fazer uma aproximação simplória com um pintor que possui apenas cinco tintas, sendo três delas suas cores principais e um tubo de preto e outro de branco. Ele pode misturá-las e procurar sua melhor opção de matiz; além disso, pode escurecer ou clarear. Contudo, sabemos que não é tão simples assim: ao adicionar branco, os valores serão outros, pois amarelos mudam diferentemente de azuis quando se adiciona o pigmento branco (ele tem sua natureza particular e depende de como foi formulado). A construção da pintura, da relação entre o que se enxerga e o que se pinta, a escolha de uma cor para representar uma cor inexistente em seu espaço pictórico serão questões que serão resolvidas por uma aproximação e não por uma exatidão; o pintor tem que fazê-lo de forma perceptual. Terá que propor uma solução para as diferenças, terá de forjar uma relação que não é relativa nem absolutamente colorimétrica. Nem sempre essa decisão é a melhor para alguns problemas gráficos, ela só pode ser feita a partir de provas de estado e discutida entre todos os responsáveis pela nova tradução.

Impossibilidade da cópia idêntica

Joseph Brunner, quando discorria sobre os procedimentos de seu ofício, projetava seu ideal gráfico. A metodologia necessária para a construção de uma representação ideal (não idêntica) de um pintor partiria da obra do artista. Era a partir dos pigmentos que seria arquitetada a engenharia para reproduzir e depois converter as cores para o sistema gráfico. Primeiro, analisar o espaço-cor de trabalho do pintor; segundo, determinar quais deveriam ser as tintas de impressão e assim produzir uma escala CMYK própria para melhor representá-las. A escala de acompanhamento, com suas cores primárias, suas misturas principais e tons de cinzas gerados a partir da própria tinta, seria exclusiva e nortearia a reprodução. Nos anos 1990, ao invés do cromo da pintura ter como referência a escala Kodak teria a do pigmento próprio do trabalho.

Brunner argumentava sobre a escala Europa – fria em relação às cores tropicais – e sua limitação, discorria sobre as diferentes escalas japonesas e sobre as várias possibilidades que envolviam pesquisa e uma busca por outras soluções. Também gerou sua própria escala de cores e inverteu a ordem de impressão para um aumento no espaço dos verdes, dos amarelos. O procedimento para o pintor era uma utopia fora de viabilidade econômica na época, mas se mostrou – mesmo que ainda distante – viável anos depois quando chegou o acesso a uma tecnologia de tintas que aumenta o espaço de representação. O que poderia ser visto como visionário era na verdade conhecimento profundo de uma prática. A primeira vez que presenciei a separação de um original monocromático em duotone foi na preparação Grande Sertão Veredas, de Maureen Bissiliat com trechos de Guimarães Rosa. Parece evidente que densidades máximas de preto não podem ser alcançadas com apenas uma passagem de impressão, não cobrem totalmente a luz do papel. São necessários dois pretos para reforçar a ausência de luz, mas é preciso cuidar para que as primeiras nuances visíveis nas partes escuras de uma imagem não sejam sorvidas. É preciso desenhar as curvas de tintagem. Pura matemática que sai de provas de máquina com matrizes superpostas de cinzas em várias escalas.

As diferentes edições The Americans

A imagem – Savannah, Geórgia. 1955, (17 x 11,5 cm) do livro The Americans de Robert Frank – foi impressa com duas tecnologias diferentes, e as reproduções foram comparadas e mostradas por Richard Benson no livro Printed Picture. Essas duas impressões são um bom exemplo de como as imagens podem ser transcritas e transformadas. Uma delas, a da primeira edição, por Delpire em de 1959, realizada na França e impressa em rotogravura, está posicionada na esquerda; a da edição de 1969, impressa em offset litográfico em Nova York pela Aperture, à direita.

Nas observações de Benson, “quando a fotografia química é traduzida em tinta, a qualidade da reprodução pode variar tremendamente. Mesmo em condições ideais, cada processo altera a imagem que reproduz; no mundo prático, onde tempos dos editores são apertados, os orçamentos limitados e o impressor têm que lutar com seu ofício, as reproduções podem muitas vezes terminar em resultados terríveis”. Ele se refere também a procedimentos de offset em larga escala que estavam sendo implantados: tiragens que demandavam quantidade maior de exemplares e nas quais não havia o domínio de performances. Essa batalha pela qualidade é ainda a que permanece no campo prático: a gráfica que tem uma área de pré-impressão e sistemas que permitam o acompanhamento e uma interpretação apurada é a que irá cobrar muito mais pelo serviço que executa.

Voltando às duas versões da impressão da fotografia de Frank, pode-se constatar na versão offset como ela é pesada, com as áreas de sombras achatadas, chegando a esconder a expressão dos olhos do personagem masculino, fazendo com que a rua asfaltada invada o contorno da figura feminina. A versão em rotogravura é apontada por Benson como clara e lírica em sua descrição fotográfica. Os volumes adquirem forma, um espaço se realiza entre as figuras e o fundo. Podemos dizer que relação fotógrafo e o casal se esclarece, a perna da direita do homem tem um pequeno tremido vindo em direção a câmera que não se pode observar se tivéssemos apenas a segunda versão. Poucas cópias foram realizadas da edição de 1959 e muitas foram feitas pela editora americana em 1969; a complexa imagem da esquerda foi enormemente influenciada pela interpretação da de maior tiragem. A edição americana subsequente, de 1978, como a do grande catálogo Looking In, editado pelo MoMA, já estão perto de uma interpretação que se aproxima da imagem original.

Conclusão

Hoje, a qualidade da impressão entre a gráfica de Nova York e a de São Paulo pode ser parecida, sabe-se qual é o lugar onde se deve imprimir, onde há o espaço para uma troca de ideias sobre como a fotografia deve ser representada. Técnicas de impressão só podem evoluir se houver uma massa de pessoas interagindo, pedindo novas soluções estéticas. Fotógrafos artesãos, que se preocuparam com suas cópias finais, contribuem com a experiência que acumularam dentro do laboratório. Técnicos gráficos têm, pela sua formação, soluções prontas que podem não resolver determinadas questões, operam dentro de uma cadeia industrial e, dependendo da solicitação, não existe espaço para mudar o padrão, para o erro. Em várias grandes gráficas brasileiras, é normal encontrar uma pré-impressão terceirizada, o que significa não ter com quem conversar sobre soluções alternativas e estar limitado apenas a alguns protocolos.

Em uma entrevista de 1978, o crítico de fotografia americano Allan Douglass Coleman constatou que havia duas diferentes vontades de parte dos fotógrafos atuantes:

Há trabalhos em que você realmente não pode obter a experiência plena das imagens, exceto quando em contato direto com as impressões originais. Em grande parte, isso acontece porque seu autor está comprometido com a cópia fotográfica como o veículo principal para o seu trabalho. Um exemplo disso pode ser Weston, não importa o quanto você possa reagir às suas imagens simplesmente como imagens, até que você tenha a chance de sentir a qualidade de suas impressões pelo contato real com elas, você simplesmente não está ciente da profundidade de sua sensualidade, de sua resposta sensual ao mundo.

Mas eu vejo um número crescente de fotógrafos que estão começando a pensar na cópia fotográfica como uma matriz para a reprodução, e não como um fim em si mesmo. Uma vez que você faça isso, já não aceita mais reproduções como fac-símiles inadequados do seu trabalho, mas pode realmente começar a conceituar a reprodução como a forma múltipla ideal para o seu trabalho, com as cópias originais sendo quase um aspecto tangencial ou irrelevante.

Em 1978, ainda não havia no Brasil um movimento expressivo para colecionar e possuir cópias originais. Não existia uma revista de fotografia que pudesse se aproximar do projeto da Camera e da Aperture. As coleções e galerias eram ainda uma realidade bem distante. E tínhamos as duas vertentes completamente atrofiadas, os que conheciam os caminhos gráficos e ao mesmo tempo fotográficos. E podemos entender como um depende do outro para se desenvolverem.