Mágico, de Mariana Chama: narração de uma experiência visual
“Estou sempre fazendo as mesmas imagens, estou sempre olhando para fora tentando olhar para dentro, tentando dizer algo que seja verdade. Mas talvez nada seja verdade, a não ser o que está lá fora. E o que está lá fora é sempre diferente.”
Robert Frank
Este texto tem como premissa desenvolver uma crítica a um livro de fotografias. Não acredito, contudo, que possa contribuir revelando significados ocultos, articulando conceitos filosóficos ou interpretando as imagens. Ao invés disso me parece mais oportuno contar o ato de ver o objeto, um ato subjetivo que compreende, para além de considerações teóricas, a dimensão sensível, corpórea, implícita nas imagens. O meio fotográfico tem a vantagem de nos fazer ocupar, enquanto espectadores, a posição angular de outra pessoa num espaço e num tempo em que nunca estivemos propriamente. A língua inglesa tem duas expressões que me parecem pertinentes quando colocadas em relação à observação de fotografias. A primeira diz put (oneself) in (someone’s) shoes, algo como se colocar no lugar da outra pessoa, e convoca um sentido de empatia ao propor a adoção da perspectiva de outrem para observar algo que, sem essa identificação com a diferença, compreenderíamos apenas segundo nossos critérios individuais. A segunda expressão, stand on someone’s shoulder (ficar sobre os ombros de alguém) é geralmente utilizada em relação ao conhecimento, às descobertas que só se viabilizam na medida em que derivamos de caminhos trilhados anteriormente. Partindo desses dessas duas expressões idiomáticas, este pequeno texto considera o livro de fotografias de Mariana Chama como um caminho em direção ao conhecimento que não está para além das imagens, em conceitos que utilizam a obra de arte apenas como trampolim, mas dentro da experiência de sua manifestação perceptiva.
O livro foi editado em 2017 e, à exceção do título, do colofão e do poema de Drummond “Liberdade”, que sucede a página de rosto, não contém qualquer outro texto. Logo na capa, sobre uma fotografia que apresenta um ambiente aparentemente festivo, o nome da autora se encerra em um espelho. Fora da reflexão, acima da moldura, encontramos o vocábulo “mágico”, título do volume, que se acende no contraste dos caracteres brancos sobre o fundo escuro. Tais posicionamentos do título e do nome da autora, que se encontram respectivamente fora e dentro da superfície reflexiva, parecem prenunciar uma questão que permeia a narrativa visual, a saber, uma meditação exercida entre observar e se notar observando. Ainda em relação à mesma imagem, um olhar mais alongado permite a notação de informações que, num primeiro momento, podem passar despercebidas. A primeira é que o ambiente se trata de um set de filmagem ou de um stand comercial, dado que se afirma na estrutura metálica atrás do lustre e dos planos brancos das paredes e tetos que, não fosse o espelho, permaneceria oculta. Essa hipótese é reforçada pelos reflexos de luminárias típicas ao meio audiovisual, cujo brilho das lâmpadas é devolvido à objetiva por meio dos vidros dos quadros sobre a cristaleira. O segundo dado consiste no ponto do espelho para onde a perspectiva da imagem converge — a câmera que produziu a foto —, sustentada pela artista que se esgueira atrás da senhora vestida com estampa felina. A imagem é um autorretrato.
Adentrando as primeiras páginas, salta aos olhos a disparidade entre as imagens: um cão observa uma estrada de terra e uma sombra no chão (provavelmente a silhueta da fotógrafa) se alinha com sua silhueta; um ambiente interno com uma janela inalcançável e, na quarta dupla de páginas abertas, o retrato de um garoto. Nessa última imagem o menino esconde seu rosto atrás de uma folha seca. Podemos imaginar a correspondência entre o gesto dele — que, elidindo seu semblante com a folha-máscara, entrevê quem fez a foto nos buraquinhos do vegetal — e o ato fotográfico de sua interlocutora que, no gesto correspondido entre olhar e ser olhada, se oculta em seu turno detrás da câmera-máscara enquanto o vê por meio de seu dispositivo. Mas só contamos com um dos lados dessa situação — a imagem. Seu anverso permanece na lembrança que talvez o garoto guarde daquela tarde em que esteve sobre a areia, ou no esquecimento daquele dia.
Esse retrato parece ecoar em duas outras imagens mais adiante. A primeira mostra o interior de uma residência. A luz do fim de tarde se encosta, dourada, nas paredes, iluminando porções de uma fotografia de paisagem sobre um aparador. Num plano mais recôndito, recebendo apenas reverberações da luz do primeiro plano, vemos duas máscaras, uma africana e outra europeia, projetando para o lado as perspectivas cavaleiras de seus perfis em sombras. A máscara africana, em seu formato alongado, se assemelha ao rosto do menino, encompridado na extensão da folha.
Seis páginas adiante, vemos algo que bem poderia ser a mesma folha. Mas aqui ela está caída, enlameada e prestes a se decompor. Ainda assim os matizes ocres, amarelos e verdes rebrilham algum viço, como se resistissem à deterioração informe da terra, podendo ainda ser uma forma, um rosto, por mais desfigurado e derrisório que possa parecer.
Outro elemento recorrente no livro são as paisagens urbanas que partilham entre si características como a atmosfera noturna, uma indeterminação geográfica e alguns focos de luz que aparecem à distância. Em correspondência a essas cintilações, como se enfim pudéssemos ver aquilo que as janelas encerram, como se, por um passe de mágica, fosse possível transferir nossa presença aos lugares que se anunciam longínquos, encontramos outras imagens que habitam o limiar entre um espetáculo produzido e certos milagres domésticos. Um caso exemplar consiste na foto da mulher que permanece no corredor de uma plateia vazia, recebendo a luz de um refletor que a atinge de costas e oculta sua fisionomia.
Atrás dela, distinguem-se duas outras pessoas submersas na penumbra — fazem parte da encenação ou, assim como nós, apenas observam a mulher?
Na fotografia das duas crianças brincando no chão, temos uma situação análoga no que diz respeito à iluminação. O sol os atinge de cima, mas os elementos francamente claros se limitam a porções ínfimas das duas figuras: o chinelo e o piso de cor sanguínea onde a silhueta da janela é projetada em luz. O restante do ambiente persiste engolfado pela escuridão, à semelhança das pinturas barrocas que também sobrepõem uma esfera encenada, qual um palco de teatro, ao realismo de suas frutas, alaúdes e corpos cotidianos.
Esse termo, cotidiano, pode ser oportuno para abordar um outro aspecto relevante do livro. Na sucessão de retratos, cenas domésticas e paisagens, parece se condensar um espaço que, se por um lado é indeterminado — nenhum prédio ou marco topográfico distinto nos acode —, por outro, tem uma qualidade habitável. Maurice Blanchot menciona que, por definição, o cotidiano escapa (BLANCHOT, 2007, p. 239), “é a vida em sua dissimulação equívoca, e ‘a vida é uma anarquia de claro-escuro […] Tudo se interpenetra sem pudor numa mescla impura’” (Ibid., p. 240). Ainda segundo o ensaísta, “…eis que sobrevém uma brusca claridade. ‘Algo se acende, surge como um clarão sobre os caminhos da banalidade […] o milagre ‘penetra de modo imprevisível na vida […] e revela-nos a verdade trágica, essa verdade absoluta…” (Ibid.). Essa oscilação entre algo corriqueiro, que nos passa ao largo, mas que subitamente se transfigura em uma percepção que beira o sobrenatural, é um limiar que as fotografias do livro não cansam de cruzar. Por vezes, inclusive, essa travessia não pode ser claramente determinada, demandando um segundo, um terceiro olhar para que reconheçamos aquilo que nos é familiar e que, em meio a uma aparente banalidade, passa a nos afetar.
E de que se trata esse reconhecimento? No ensaio Arte e imitação, o filósofo Hans-Georg Gadamer define que “Reconhecer significa muito mais conhecer algo como aquilo que já vi um dia. Todo enigma reside, contudo, nesse ‘como’ […] se reconheço alguém ou algo, então vejo o que é reconhecido liberado tanto da contingência atual quanto da de outrora […] é assim que ele (o reconhecimento) é efetivo na alegria junto à imitação” (GADAMER, 2010, p. 18). Após descrever o contentamento inerente aos atos mímicos, que nos contagia ao distinguirmos, por exemplo, uma personagem numa fantasia carnavalesca, Gadamer conclui que o reconhecimento também implica uma experiência de familiaridade que temos com o mundo e que, ao ser vivenciada, proporciona o sincronismo entre conhecermos o mundo e, nessa apreensão, conhecermos a nós.
Em Mágico, esse percurso em direção ao autoconhecimento se dá segundo um ethos que não oculta a dimensão artificial (pois construída) da narrativa imagética. A penúltima página aberta do livro mostra integralmente a fotografia utilizada na capa. Podemos traçar as diagonais da pirâmide perspéctica que encontra seu vértice na objetiva que captura a si própria, de modo a podermos deixar de lado a ilusão especular, sua premissa de constituir um ponto cego de figuração (Cf. MACHADO, 2015, p.112).
Esse desimpedimento quanto a afirmar o caráter construído da narrativa é reafirmado na última imagem, que mostra um interior visto através de uma janela. O ambiente possui alguns bonecos feitos de gesso e, sobre uma mesa, vemos um pedaço de uma cidadezinha, uma maquete caiada com seus arcos e volumetrias apoiadas sobre o tampo de madeira. Assim como a cena teatral, assim como os retratos e as vistas urbanas, sabemos que nos movemos dentro de um ambiente intencionalmente produzido, mas que apesar disso ou justamente em função desse fator, “permite que um rosto, um lugar, uma paisagem sejam reconhecíveis, familiares, habitáveis.” (GHIRRI, 2013, p. 252).
Referências bibliográficas
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: escuta, 2007.
CHAMA, Mariana. Mágico. Dissertação (Mestrado em artes). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
GHIRRI, Luigi. Pensar por imagens: ícones, paisagens, arquiteturas. São Paulo: IMS, 2013.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.
Vídeos:Fotolivro de cabeceira com Mariana Chama | The Lines of my Hand (1989), de Robert Frank — https://www.youtube.com/watch?v=vWI–Rszj9o (acessado em 24/09/2021)