João Luiz Musa

Do mesmo modo que as exteriorizações vitais se mantêm intimamente relacionadas com os seres viventes, sem todavia os afetar, a tradução nasce também do original, procedendo neste caso não tanto da vida como antes da “sobrevivência” da obra. Isto porque a tradução é posterior ao original, e, como os tradutores predestinados nunca as encontram na época da sua formação e nascimento, a tradução indica, no caso das obras importantes, a fase em que se prolonga e continua a vida destas.

…. As traduções que são mais do que meras intermediárias só surgem quando uma obra atingiu a época da sua glória. Ao contrário do que reclamam para si os maus tradutores, as traduções não favorecem esta época de glória e são mesmo beneficiadas por ela, devendo-lhe a sua existência, pois que a vida da obra original chega até as traduções constantemente renovada e com um desenvolvimento cada vez mais amplo e recente.

Walter Benjamin, A tarefa do tradutor, tradução de Fernando Camacho

Heidelberg, Indigo e Landa

São três marcas de impressoras industriais. A primeira alemã e uma referência de precisão e eficiência em offset. Foi, e ainda é, o sonho de um autor ver seu livro rodado em tal equipamento. Para prepará-la, para se iniciar uma tiragem, são necessárias placas de impressão que devem ser devidamente marcadas – para adquirirem um pequeno relevo – através de um arquivo fechado e aprovado denominado PDF e por tecnologia a laser. 

PDF (Portable Document Format). É um formato de arquivo, desenvolvido no ano 1993, para representar documentos de maneira independente do programa, do aplicativo e do sistema operacional usados para criá-lo. Um arquivo PDF pode descrever documentos que contenham texto, gráficos e imagens fotográficas num formato independente do dispositivo e da resolução.

Essas placas de impressão – possuem a imagem desenhada por pontos determinados por uma retícula – serão as responsáveis por transmitirem para uma borracha de impressão o ponto de cor que deve ser carimbado no papel. Essa espécie de carimbo, por sua vez, exige que arquivos de separação de cores estejam alinhados ao tratamento que as imagens passaram antes de se tornarem o PDF. Todo processo é indireto e precisa de padronizações exemplares. O trabalho envolvido para que se chegue na frente da Heidelberg para iniciar a impressão é imenso e custoso. Agora, iniciando o que chamamos de acerto da impressão, são necessárias mais de 200 folhas de papel, que servirão para se fazer o registro exato. Por mais que a tecnologia tenha evoluído, o tempo de acerto pode demorar de uma hora e meia a quatro horas. Com tudo acertado, inicia-se a tiragem – se for de 2 mil – dura menos de 15 minutos. A máquina custa vários milhões de reais. O custo da parte industrial de um livro de imagens A4 de 144 páginas em quatro cores não sai por menos de 40 reais a unidade. Uma tiragem de 2 mil equivale a dois carros novos populares!

Introdução

Penso na exaltação, no prazer que deve ter sido abrir uma pasta com desenhos de um artista desconhecido, mas já anunciado, com seu nome passado lentamente de boca em boca através de cartas ou de citações enfáticas, de amadores ou de alguns poucos que podiam saber do valor do trabalho que tinham em suas mãos. Como seria abrir a pasta dura, que muito bem protegia seu conteúdo, e encontrar vários originais? Ou ainda se perguntar se esses desenhos não seriam as cópias e não os originais. Se fosse meu ofício desenhar, me veria imediatamente desvendando a linha, a direção que a grafite seguiu, reconhecendo neste caminho pelo papel alemão, italiano ou aquele que pouco conheço, o rastro causado pela fricção, me deparando com os diferentes tempos das anotações. Aqui correu, ali copiou do que estava em sua frente, de novo mudou de ideia, acolá imaginou ou lembrou do que tinha visto. Tenho de fazer essas elucubrações, afinal também o faço há muito tempo e posso me contrapor a todos esses sinais que estão no papel, decifrá-los, entender seus significados, pelo menos supô-los. Espanto-me com as soluções impensadas, como alguém pôde ousá-las. E que papel! Tem uma fibra, uma textura, uma forma de guardar o traço, o borrão.

Agora estou diante de outra pasta, nesta são impressões e estão em um papel fino, leve e com certa transparência, que visto contra a luz revela suas fibras. Os escuros são marcas geradas visivelmente por um material rígido, em que a parte escavada não recebeu a tinta; em algumas percebe-se a textura da madeira, em outras que pertencem a outro autor pode-se supor que sejam geradas por um sólido contínuo. A textura da madeira foi tão densa e com poros tão fechados que, mesmo se aproximando muito, não se pode notar as sutilezas de sua matriz. Sabe-se que, dependendo da dureza da matriz, do tipo de árvore e da direção do corte do tronco, o efeito será de continuidade e o traço muito fino. A terceira pasta tem exemplos em papéis de várias procedências e pode-se perceber que são advindas de diferentes técnicas de impressão; em uma delas existe um relevo, a linha enegrecida salta para fora da superfície. Existe volume na imagem, e a gravura propõe uma outra leitura. Ainda em outra, começam a se misturar muitas maneiras de gerar matrizes, pontos minúsculos, irregulares, dispersos em nuvem, como se um fino pó houvesse sido depositado em uma placa para que mais tarde fosse possível se ver um cinza na superfície, na estampa.

Um museu no ano de 2018 pede reproduções de uma série de desenhos, o contratado não sabe para que servirão seus arquivos digitais. Os desenhos estão em diferentes papéis, alguns visivelmente amarelados, outros são já bem escurecidos, tendendo para uma cor alaranjada escura. Outros, ainda, de algum autor contemporâneo – são obras recentes –, que utilizou um papel industrial completamente alvejado, tão claro e luminoso que emite um pouco de um leve azulado. E para complicar a tarefa da encomenda, em uma das obras em papel apresenta-se uma colagem na qual nota-se a impressão industrial e uma fina retícula em cores causada pelo processo.

A encomenda agora inclui um belo álbum de fotografias de imigrantes japoneses, no qual se pode notar tratar-se de uma coleção que deve ter levado muitos anos para se formar. Pessoas estão em sua terra natal? Mulheres aparecem vestidas em lindos quimonos e homens em ternos sóbrios; um dos lugares para a pose é o convés de um navio, e a imagem foi realizada em um formato mais retangular, envelheceu bem, apresenta marcas delicadas do tempo, provável reação da cola ou do cartão do álbum em que está presa. Outras, no entanto, estão escurecidas, são de formato mais perto do quadrado e apresentam um serrilhado em suas bordas. Outras ainda estão com um estado avançado de deterioração; manchas escuras e nuvens que se perderam.

Como deveriam ser conduzidas as reproduções?

Para que servem, para quais usos estão destinadas? Dependendo da resposta, a técnica reprodutiva será específica. Trata-se de divulgar a pintura? Imprimi-la em um livro? Um catálogo de uma exposição? Será necessário mais rigor, exigir uma tabela de cores que acompanhe a obra e que sirva de referência para o tratamento que irá receber, para quando for transformada nas quatro separações de cor CMYK a ser impressas. Contudo, caso seja para um expertise mais complicado, como avaliar um parte da pintura que rachou no transporte ou que perdeu parte de sua matéria; é preciso revelar o ligeiro racho que apresenta na sua superfície ou ainda caso o problema seja representar uma cor com fidelidade absoluta, na tentativa de representar um pigmento; tudo pode-se complicar e, em geral, não estamos preparados para isso. Uma reprodução é uma tentativa de criar um elemento mediador, que devolva perguntas – além de anotar o que já supõe ver – e que transite entre a obra e quem dela pede sua função. A reprodução é também uma tradutora que domina as duas línguas, nasceu de pai africano e mãe australiana, no Alaska. Fala bem as duas línguas, entende vermelho em dialeto nianja e explica em inglês o que significa falar com tal ênfase sobre a cor estrangeira. Todavia, todo meio tem seus limites e nem sempre se sabe até onde se pode ir com uma reprodução. O que afinal está mostrando a partir do momento em que a luz for colocada rasante em relação à superfície da pintura, ou ao desenho? As pequenas diferenças de altura da tela estão tão demarcadas que parecem exagerar o que de fato acontece, mas ainda assim não se pode ver o interior das rachaduras, pois a luz está de tal maneira contrastada que tornou os pequenos intervalos tão escuros que impedem sua visualização. Então, se a o iluminante principal tem uma fonte com a potência correta, se tem o tamanho e a difusão adequados para que a parte, em relevo, que interessa observar esteja razoavelmente desenhada, talvez o que falte seja um rebatimento da luz principal para que se possa diminuir o contraste, sem perder a textura, e assim ter acesso à informação que ocupa o interior das rachaduras. É preciso experimentar, às vezes, vários tipos de rebatimento para que se obtenha o resultado esperado. Voltando ao desenho, qual processo deve ser usado para iluminar cada um deles? Qual formato e qual tipo de fonte se deve utilizar, qual a distância padrão, que tipo de difusão? Pode ser que os desenhos sejam iluminados com um critério único e homogêneo para que a instituição que os guarda reconheça a forma que foram reproduzidos e possa comparar as diferenças entre os desenhos pela simples visualização de suas imagens. Afinal, é bom que se conheçam as regras exatas de como as reproduções são feitas. Mas a regra exata faz com que, em alguns casos, a superfície dos desenhos emita um brilho a partir de um grosso grafite que deforma a maneira de vê-los. Na presença dos desenhos, ao vivo, percebe-se o brilho, e ao se mover o olhar ou o ângulo do desenho em relação ao olho, percebe-se ou melhor compõe-se algo a seu respeito. Ao se retirar completamente o brilho do grafite, sua superfície ficou tão densa que se perde a sensação do material. Talvez este desenho não possa ser resolvido por uma única imagem fotográfica. Para representá-lo, serão necessárias mais de uma imagem para compreender precisamente o que se vê. Talvez, para se aproximar dele, seja preciso melhor estudá-lo com atenção e realizar testes para escolher a forma como a fotografia pode abordá-lo. Cada forma explicitará a intenção da reprodução, sua especificidade: mostrar o brilho do grafite; mostrar a textura do papel; mostrar apenas o desenho ou apenas um detalhe; suprimir a cor envelhecida do papel para que a linha se evidencie ou não. Pensar se faz sentido deixar o desenho em fundo branco pleno sem detalhes, assumindo que, com isso, se perderiam as pequenas marcas cinzas claras deixadas pelo lápis. Qual deve ser a densidade reflexiva do fundo do papel representado? Cinco ou set por cento de cinza poderiam em alguns casos ser idela; já 20% seria um exagero ao usar um cinza tão escuro, tirando da representação quase toda luz de fundo que teria que emitir. Tenho vários exemplos de edições que visivelmente optaram ou aceitaram essa solução escura; as razões podem ser muitas, como não visualizar a imagem em meio adequado, não ter visto uma prova antes de a publicar ou por pura ignorância ou despreparo em relação ao desenho ou a fotografia.

O embate das várias formas de se interpretar uma obra de arte nem sempre ocorre de uma forma aberta. É comum o pedido suprimir as diferenças que possam existir para gerar o tal do “documento” que servirá para representar a obra em uma publicação ou autenticar seu estado. Para esclarecer, quando pensamos no estado de um desenho sobre papel e este apresenta um amarelado, ou um marrom por envelhecimento, é provável que o conservador do museu necessite de uma imagem que comprove exatamente o estado em que se encontra, mas, ao contrário, o curador-chefe quer que, no catálogo, transpareça o melhor do desenho, o que pode significar eliminar ou minimizar a presença do papel deteriorado. A galeria irá apresentar sempre a obra parcialmente restaurada na reprodução, faz parte de quem presta o serviço entregar a melhor imagem, a mais exuberante; essa seria a praxe de um mercado, e não daquela que investiga ou dialoga não só com a obra, mas com a própria linguagem de transcrição que é fotográfica.

Qual seria o padrão da reprodução?

Existe uma parte do processo fotográfico que se esconde por trás do resultado de uma reprodução. Existe um mundo de decisões que estão entrelaçadas com esse fazer. Vou me remeter ao procedimento antigo de usar cromos de médio ou grande formato para reproduções de obras de arte. Um padrão exigido de toda reprodução “correta” é que ela tenha em seu campo uma escala de cinzas e cores de referência, para que se comprove no cromo a exposição e a filtragem corretas; serve para verificar uma invasão de cor no diapositivo revelado, se a escala de cinzas, deste padrão, está neutra. A escala tem sido uma prova de que existe controle sobre o resultado, uma garantia. Era e é uma forma de se ter um parâmetro. Até os anos 2005-2008, quando um cromo era digitalizado para um catálogo e não se podia ter o original ao lado, os padrões para sua digitalização incluíam manter os cinzas da escala. Ela sempre serviu, em primeiro lugar, para o acerto da temperatura de cor da escala de cinzas que a acompanha. Não se pode entregar uma reprodução com uma escala invadida por uma cor, não existe nenhuma cor representada de forma plena sem que o balanço de gris tenha sido efetuado. Para isso, o padrão da escala tem que estar na validade, não pode ter desbotado. E quem tem como aferir se ele está ou estava na validade? Vi muitas vezes as escalas visivelmente desbotadas em cromos que serviam aos curadores e museólogos. Em segundo lugar, podem ocorrer outros desvios, mesmo com tudo aferido e o balanço de gris realizado. Os cinzas de uma aquarela ou de uma pintura podem possuir um pigmento que provoca a emissão de uma cor que pode ser vista de uma forma ou de um matiz que não consegue ser registrado em cinzas numericamente iguais. Coisas que existem no universo fotográfico, do processo sensível se um dado material escolhido, de um parâmetro do captador. Existem tintas que se comportam de forma bizarra, podemos ver uma cor e a fotografia pode enxergar outra. Tapetes sintéticos verdes eram fotografados em cromos e suas imagens eram a de um tapete marrom. Ou ainda a deterioração de um papel emite outro comprimento de onda que gerara uma alteração de cor no arquivo processado. Paredes brancas recém pintadas com tintas acrílicas emitem uma radiação azul captada para o cromo e imperceptível ao olho humano que analisa a parede. Então, temos o protocolo executado e a reprodução invadida por uma cor indesejável. A fotografia digital também se prepara para enfrentar problemas específicos e corrigir distorções. Não existe um sistema fotográfico (aparelho e sensor) que consegue ver tudo, ele terá que ser pensado para ver o que se espera que se veja. Ou preparado para ver o que não se pode ser visto a olho nu, o que sempre desencadeia a descoberta de coisas que não eram esperadas.

O que era uma prova de cor, o que é?

Orçamentos para a contratação de serviços de reprodução por terceiros especificam o tamanho do arquivo em dpi pensado para o uso, para o tamanho da publicação em que será usado, nem sempre especifica o espaço de cor-luz com que o arquivo digital será realizado, nem ao menos qual tipo de tratamento a imagem deveria receber. Os programas de tratamento têm engenharia própria para lidarem com a relação entre os pixels e as pequenas alterações que provocam saturações ou propõem diferenças de contraste entre superfícies de maneira notáveis. Pequenas diferenças entre duas densidades podem ser aumentadas ou diminuídas na captação e no tratamento. Sabemos que tudo pode alterar o arquivo, desde a maneira como o captador específico define a linha a ser representada, como alterações provocadas por objetivas, como pela capacidade do sensor. Usualmente, não se pede provas do arquivo, aceita-se o arquivo eletrônico de alta e um outro para uso na internet (em geral em outro espaço cor – sem se dar conta que isso pode mudá-lo), simples assim. O serviço está garantido, afinal tem-se o aval e a responsabilidade de quem o fez e em geral os contratantes não estão preparados para verificar a qualidade de arquivos, não adquiriram critérios para tal.

Voltando ao cromo analógico; sua cor era aferida iluminando a obra de arte com uma fonte normatizada, 5500 graus Kelvin e, com uma mesa de luz também padrão, observando o cromo e analisando sua interpretação. Não é assim que as coisas aconteciam, em geral esse cotejamento era feito conferindo se as escalas de referência estavam neutras e se não existia algum grande absurdo. Verificada a correlação entre o original e sua representação – a imagem que daria conta das questões essenciais a serem mostradas –, este cromo passava a ser a referência de quem preparava o catálogo. O gráfico responsável pela digitalização usava a escala para colocar o arquivo alinhado ao cromo, que iria gerar as chapas de impressão; o original não poderia ir a indústria para que fossem conferidas suas cores principais, tudo agora baseava-se na reprodução. O cromo era a prova da cor, a separação tinha que acompanhá-lo. Poder-se-ia solicitar uma prova em papel, que emulava o offset final, para que esta fosse assinada pelo responsável, e seria que nortearia os impressores do livro. São muitas as passagens em que os critérios eram e ainda são bem largos, pois dependem de muitas variáveis, desde como se vê a prova, sob que tipo de iluminação é observada, até a mudança de seu papel em relação àquele em que será impresso o livro e da tinta diferente que está sendo usada em cada um deles.

*Ler a parte 2 deste texto.